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Dica de Filme: Você não estava aqui, de Ken Loach.

 

Em “Você não estava aqui”, (Sorry, We Missed You, na versão original), que tem como cineasta o inglês Ken Loach e roteirista Paul Laverty, a oportunidade de fazer muitas reflexões acerca do trabalho em plataformas digitais. Tem a cidade de Newcastle, na Inglaterra, como cenário da narrativa, cujo protagonista é Ricky Turner. Este e sua família (Abbie, sua esposa e seus filhos Sebastian e Liza Jane) passam por dificuldades, iniciadas na crise econômica de 2008.

O filme inicia com a entrevista de emprego entre Ricky e Maloney, o gerente de um depósito de uma grande empresa de entregas (PDF Company). No diálogo travado diz que “já fez de tudo”. Pelas dificuldades enfrentadas, quer trabalhar sozinho, ser “seu próprio chefe”. Questionado por Maloney, se vangloria de nunca ter recebido seguro-desemprego, ao argumento que tem seu orgulho e que “preferia morrer de fome se o fizesse”.

O Gerente Maloney demonstra satisfação com o que ouve e o instiga a ser “empreendedor”: “Aqui você não é contratado, você embarca; Você não trabalha para a gente. Você trabalha com a gente; não há metas a cumprir; aqui não há salário, há honorários”. Vai além: “Você faz do seu jeito... contanto que seja para cumprir as nossas metas”. Ali, os trabalhadores são tratados como “colaboradores”, que aderem aos termos contratuais, sem fazer juízo de valor acerca das imposições que constam de tais instrumentos.

O cenário ali construído leva Ricky a acreditar que a oportunidade de se desvencilhar das dívidas contraídas ao longo do tempo chegou, afinal irá “tocar” seu próprio negócio, não obstante tenha sido avisado que os riscos do negócio corriam por sua conta”. Fato é, que não pensou sobre os reflexos que a sua decisão teria para sua família. Isso porque, ao aderir ao contrato compra uma Van, pois alugar uma das disponibilizadas pela empresa não seria uma boa opção. Além dos custos, não o levaria a ter “rotas melhores”.

Antes de tomar a decisão, convence sua esposa que deve vender o carro, pois é um projeto de família. Ignora, assim, a realidade de Abbie, que trabalha como cuidadora de idosos e faz uso do veículo para se deslocar e chegar até seus pacientes. A agenda de Abbie é exaustiva e, como Ricky, sem vínculos de emprego ou garantias trabalhistas. Suas jornadas de trabalho ficam cada vez mais longas e intensas, pois, agora, depende do transporte público coletivo para se deslocar. Por isso, há um distanciamento da rotina familiar e do acompanhamento efetivo na educação dos filhos (Liza, com 11 anos e Seb, um adolescente).

Em ambos os contextos observam-se inúmeras mazelas. Como Ricky, os trabalhadores são seduzidos pela falsa promessa de ganhos maiores, ao passo que Abbie se une ao sonho do marido, com a esperança de melhores ganhos e, também, piora a sua situação profissional, pois sua rotina já era sacrificante, mas fica pior ao “embarcar” nas idéias do marido.

O casal fica escravo do trabalho e as cenas degradantes se repetem a cada dia, tanto nas entregas, cada vez mais aceleradas, que são realizadas por Rick, quanto nas idas e vindas de Abbie, de ônibus, para atender os idosos que estão sob seus cuidados. Por conta disso, não conseguem estabelecer uma rotina saudável no ambiente familiar e social. O foco da narrativa se verte, assim, para aqueles trabalhadores, para a forma de trabalho que executam, para a degradação de seus corpos e de suas mentes.

Nada se mostra fácil... As tarefas são ricamente exploradas; há um firme propósito de demonstrar as dificuldades enfrentadas pelo casal e como elas se repetem. Há, ainda, uma intenção de lembrar que não impõem resistência às várias formas de opressão e exploração a que estão submetidos. Não há tempo para questionar, teorizar ou se insurgir acerca das condições postas, uma vez que os personagens não se enxergam ou são tratados como “trabalhadores”, mas “colaboradores”. Estes, são os “sujeitos de si”, que facilmente se convertem em “capital humano que deve crescer indefinidamente, isto é, um valor que deve valorizar-se cada vez mais” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 31-34).

O cenário mostrado explora inúmeras questões e evidencia que todos os sentidos do trabalho são esvaziados; a identidade do trabalhador é usurpada, notadamente no que concerne à situação de Ricky, que é totalmente controlado pelo scanner utilizado (leitor de códigos de barras, usado para cadastrar os pacotes, recebido na contratação).

A classe trabalhadora que é retratada por Loach é a da Inglaterra, mas a questão serve para todos os trabalhadores, pois aquele “modus operandi” foi universalizado com o fenômeno da globalização. Os trabalhadores não se articulam e isso é perceptível, tanto no Depósito em que Ricky atua, quanto nas rotinas de Abbie. assim, o trabalho perde características que lhes são peculiares e o neoliberalismo tem papel preponderante nesse processo.

Byung-Chul Han, filósofo coreano (2018), assegura que dentro do neoliberalismo o desempenho do sujeito é mensurado cotidianamente e há uma culpabilização sempre que não corresponde às expectativas. Isso afeta sua subjetividade, pois não percebe que a culpa pode estar no sistema implementado, nas metas estipuladas ou mesmo das desigualdades e injustiças sociais. Também, esse padrão de metas imposto é alterado com certa frequência e a responsabilidade pelo fracasso ou sucesso econômico é atribuída, única e exclusivamente, ao indivíduo. 

Gilles Deleuze, ao falar da transição da sociedade disciplinar vislumbrada por Foucault (séculos VIII e XIX) para a sociedade de controle (1992, p. 219-226), afirma que a última é uma forma de dominação surgida após o enfraquecimento dos projetos que caracterizaram a sociedade disciplinar, como é o caso dos hospitais, fábricas, da prisão, da escola e da própria família. As instituições não acabam, mas passam por intensos questionamentos.

Seguindo essa linha de raciocínio, as exigências que se dão no trabalho de Rick e a forma como ele é controlado caracterizariam a sociedade de controle. A família, que é herança da sociedade disciplinar, permanece, mas sofre reveses infindáveis com a ausência dos pais Ricky e Abbie. Também, dentro da sociedade disciplinar, a propriedade era concentrada no capitalista, ao passo que na sociedade de controle esse padrão é alterado, pode ou não estar em suas mãos. Ao disponibilizar seus bens, ferramentas de trabalho ou mesmo assumir a responsabilidade por bens do capitalista, o trabalhador apenas tem a propriedade pelos itens que são seus e que gera custos para manter em funcionamento, mas o negócio continua sendo do capitalista.

Logo, assume todos os custos ou zela pelos meios de produção, mas sua independência não é possível, pois somente pode utilizar tais bens/equipamentos fazendo uso da logística da empresa (scanner, por exemplo), que controla as informações atinentes a contratos/clientes. Essa é a realidade das plataformas digitais: Não há deveres trabalhistas, tampouco zelo pela saúde do trabalhador. Este, é o grande responsável pela sua condição física e mental, pois são “avisados” que podem trabalhar quando e como quiserem.

A Ricky e Abbie, personagens principais, transferem-se todas as responsabilidades afetas à atividade econômica, à exceção dos lucros. Aquele casal representa a classe trabalhadora, que está à margem dos direitos trabalhistas, não possuem limites em suas jornadas de trabalho; não recebem uma remuneração digna, não desfrutam de férias, repousos semanais, tampouco direitos previdenciários. O serviço é interminável e não gozam de intervalos para que façam uma refeição tranquila. Acumulam cada vez mais dívidas...

Ricardo Antunes também alerta para os efeitos do neoliberalismo e como a reestruturação produtiva do capital provocam modificações no mundo do trabalho. Dentre as consequências dessa dinâmica está o desemprego estrutural e o “crescente contingente de trabalhadores em condições precarizadas” (2009, p. 17). Todo o modelo de produção e a forma como a força de trabalho é explorada no filme levam à conclusão do quanto as atividades são precárias, pois se desenvolvem em condições degradantes, com salários baixos, sem consciência de classe.

Seria pela ausência de consciência de classe que Loach inseriu a cena de Molie, uma das pacientes de Abbie, rememorando sua participação em uma famosa greve de mineiros na era Margareth Thatcher (1984)? Possível que sim, pois aquela greve (1984) foi considerada um dos maiores desafios na atuação política da Primeira-Ministra, pois teve forte adesão por parte dos trabalhadores. Um de seus objetivos: rechaçar a primeira onda do neoliberalismo, cuja maior influência foi de Thatcher, que assim declarou: “A economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma”.

Os acontecimentos são inúmeros, o mesmo ocorrendo quanto às possibilidades de reflexões que advém das cenas do filme. Estas, despertam várias sensações, sentimentos e indignações frente às injustiças ali ocorridas. São várias os ciclos de violência e assédio, mas os trabalhadores que atuam como Ricky não reagem e, de igual forma, não possuem ingerência em suas formas de atuação. Precisam se manter conectados às plataformas digitais, que não possuem transparência quanto às atividades, rotas de entregas ou forma como se dá a precificação. O controle, fica em poder da empresa, que realiza o gerenciamento através dos algoritmos.  

A forma de trabalho trazida no contexto do filme, mostra que a “uberização” do trabalho cresce assustadoramente. Pior, sem a proteção e a garantia de trabalho digno, pois impõe aos trabalhadores um trabalho árduo, desumano e desprovido dos direitos sociais e trabalhistas conquistados ao longo da história. Isso não se limita à Inglaterra, mas ao resto do mundo, o Brasil, inclusive.

A forma como se dá a existência daqueles trabalhadores e, de igual forma, dos trabalhadores que atuam em condições de trabalho similares, desencadeia inúmeras crises e culmina em processos de adoecimentos físicos e mentais, que causam prejuízos irreparáveis às suas subjetividades. Alguns, irreversíveis... 

Sem dúvidas, merece ser assistido!

REFERÊNCIAS:

ANTUNES, R. L. C. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DELEUZE, Giles. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ayiné, 2018.

VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI. Direção: Ken Loach. Intérpretes: Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Rhys Stone, Katie Proctor. Roteiro: Paul Laverty. Reino Unido / França / Bélgica: Warner Bros, 2020. (101 min.)

 

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