O microtrabalho, isto é, um tipo de trabalho composto por microtarefas por trás das técnicas de treinamento supervisionado e por reforço de modelos de IA, é realizado majoritariamente por mulheres, pois elas respondem por cerca de 63% dessa mão de obra, segundo o estudo "Fabricar os dados: o trabalho por trás da Inteligência Artificial", do Laboratório de Trabalho, Plataformização e Saúde (LATRAPS/UEMG), elaborado por Matheus Viana Braz (UEMG), Paola Tubaro (CNRS/CREST) e Antonio A. Casilli (Telecom Paris).
Os pesquisadores ressaltam que não há um cálculo exato, não há um cálculo exato, uma vez que as plataformas não divulgam essas estatísticas.
Um conjunto de elementos torna essa mão de obra majoritariamente feminina, dentre os quais se destaca a dificuldade de conseguir um emprego (segundo a pesquisa, 73,7% estão desempregadas e 38,7% dependem dessas plataformas). Além disso, 40% afirmam que, embora possuam ensino superior, não encontram oportunidades em suas regiões, e 62,6% são mães ou responsáveis pelos cuidados de outras pessoas da família. Conforme um dos autores da pesquisa ressalta, o maior benefício apontado por essas mulheres é a suposta conciliação entre a realização de microtarefas e demais demandas familiares e domésticas, mascarando a jornada multifacetada e potencializando a invisibilidade dessa mão de obra.
Trata-se de uma nova configuração de trabalho, descentralizada, por meio da da prática conhecida como crowdsourcing, isto é, delegar microtarefas a uma multidão de pessoas espalhadas pelo mundo, conectadas por plataformas digitais, muitas vezes em troca de valores que, mesmo somados após horas de atividade, raramente atingem o salário mínimo nacional sem o uso de múltiplas plataformas. Além disso, é registrado um conjunto de estratégias de dispersão para evitar organização desses trabalhadores, assim como há predominância da falta de transparência nas decisões tomadas.
A Geopolítica do Microtrabalho
As microtarefas ligadas à inteligência artificial consistem principalmente na rotulagem de mídias[1], na avaliação do resultado dos modelos (no contexto da aprendizagem por reforço[2]), na moderação do conteúdo que fará parte do conjunto de dados de treinamento ou até na execução por humanos de tarefas que as máquinas não realizam bem.
Estima-se um mercado de US$ 3,5 bilhões até 2024. Tarefas de preparação/rotulagem representam 80% do tempo em projetos de machine learning. Globalmente, existem 160 milhões de trabalhadores registrados em plataformas de microtrabalho e freelancer.
O Brasil é um dos polos estratégicos dos países para os países norte global, devido à mão de obra barata e qualificada, de forma a ter seus dados e força de trabalho extraídos. Enquanto isso, os lucros e a propriedade intelectual dos modelos de inteligência artificial concentram-se no Vale do Silício, às custas do trabalho de limpeza, rotulagem e avaliação dos dados brutos e resultados dos modelos.
Essa estrutura geopolítica de extração de dados se traduz também em condições concretas de adoecimento mental e precarização, como se vê na esfera dos riscos a esses trabalhadores.
Riscos Psicossociais e a Tutela Jurídica
Há um paradoxo no qual a "mágica" da IA depende de mais trabalho humano. As plataformas de microtrabalho vendem a ideia de "renda extra", mas a realidade é uma jornada exaustiva e repetitiva de cliques que exige atenção constante e longas horas de exposição à tela para garantir centavos de dólar por tarefa.
Os riscos psicossociais, especialmente na moderação de conteúdo, expõem esses trabalhadores a discursos de ódio, violência extrema e abuso infantil, para treinar os filtros de segurança dos modelos, para treinar os filtros de segurança dos modelos, bem como definir quais conteúdos devem compor sua base de dados de treinamento[3].
Ao contrário do emprego formal, em que deve haver suporte psicológico, esses trabalhadores classificados como autônomos pelas plataformas relatam transtornos de ansiedade, insônia e dificuldade de convívio familiar, arcando sozinhos com o adoecimento mental e sem direito à desconexão.
O Ministério Público do Trabalho (MPT), atento a essa precarização, tem criado grupos de trabalho, como o de Crowdworking, para investigar fraudes e condições análogas à escravidão digital.
Recomendação de leitura:
Cartilha "Microtrabalho no Brasil: Quem são os trabalhadores por trás da Inteligência Artificial?" por Matheus VIANA BRAZ, Paola TUBARO e Antonio A. CASILLI, 2023.